Na íntegra

Discurso do Papa Francisco no Festival das Famílias


ENCONTRO MUNDIAL DAS FAMÍLIAS

Festival das Famílias com o Papa Francisco
Sala Paulo VI – Vaticano
Quarta-feira, 22 de junho de 2022

Santa Sé 

Queridas famílias!

Sinto uma grande alegria por estar aqui convosco hoje, depois dos acontecimentos que transtornaram as nossas vidas nos últimos tempos: primeiro, a pandemia; e agora a guerra na Europa, que veio juntar-se às outras guerras que afligem a família humana.

Agradeço ao Cardeal Farrell, ao Cardeal Donatis e a todos os colaboradores tanto do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida como da Diocese de Roma, cuja dedicação tornou possível este encontro.

Depois quero agradecer às famílias presentes, vindas de diversas partes do mundo, e de modo particular àquelas que nos deram o seu testemunho: Obrigado de coração! Não é fácil falar a um público tão amplo acerca da própria vida, das dificuldades ou dos dons, maravilhosos, mas íntimos e pessoais, que recebestes do Senhor. Os vossos testemunhos serviram de “amplificadores”: destes voz à experiência de muitas outras famílias no mundo que, como vós, vivem as mesmas alegrias, inquietações, tribulações e esperanças.

Por isso me dirijo, agora, quer a vós aqui presentes, quer aos esposos e famílias que nos escutam em todo o mundo. Desejo fazer-vos sentir a minha proximidade justamente onde vos encontrais, na vossa condição concreta de vida. E este é precisamente o meu primeiro encorajamento: começai da vossa situação real e, a partir desta, tentai caminhar juntos; juntos como esposos, juntos na vossa família, juntos com as outras famílias, juntos com a Igreja. Penso na parábola do bom samaritano que encontra pela estrada um homem ferido: aproxima-se dele, toma-o ao seu cuidado e ajuda-o a retomar o caminho. Queria que a Igreja fosse precisamente isto para vós: um bom samaritano que se aproxima de vós e vos ajuda a continuar o vosso caminho, vos ajuda a dar “um o a mais”, nem que seja pequeno. Este “o a mais” a dar juntos é aguardado por vários rumos, que tento agora indicar-vos retomando os testemunhos que ouvimos.

1. “Um o a mais” rumo ao matrimônio. Agradeço-vos, Luigi e Serena, por terdes contado com grande honestidade a vossa experiência, com as suas dificuldades e aspirações. Penso que é doloroso para todos aquilo que contastes: “Não conseguimos encontrar uma comunidade que, de braços abertos, nos apoiasse assim como somos”. Isto deve fazer-nos refletir. Temos de nos converter e caminhar como Igreja, para que as nossas dioceses e paróquias se tornem cada vez mais “comunidades que, de braços abertos, apoiem a todos”. Há tanta necessidade disso! Providencialmente, vós encontrastes apoio noutras famílias, que, na realidade, são Igrejas em miniatura.

Entretanto, veio-me consolar a explicação do motivo que vos levou a batizar os vossos filhos. Dissestes uma frase muito linda: “Ainda que empregássemos os mais nobres esforços humanos, não nos bastaríamos a nós mesmos”. É verdade! Podemos ter os mais belos sonhos, os mais elevados ideais, mas no fim embatemos também nos nossos limites que não superamos sozinhos, mas abrindo-nos ao Pai, ao seu amor, à sua graça. Este é o significado dos sacramentos do Batismo e do Matrimônio: são a ajuda concreta que Deus nos dá para não nos deixar sozinhos, porque “não nos bastaríamos a nós mesmos”.

Podemos dizer que, quando um homem e uma mulher se apaixonam, Deus oferece-lhes um presente: o matrimônio. Um dom maravilhoso, que contém em si a força do amor divino: forte, duradouro, fiel, capaz de se restabelecer depois de qualquer fracasso ou fragilidade. O matrimônio não é uma formalidade a ser cumprida. Não vos casais para ser católicos “com a etiqueta”, para obedecer a uma regra ou porque a Igreja assim o diz; casais-vos, porque quereis fundar o matrimônio no amor de Cristo, que é firme como uma rocha. No matrimônio, Cristo dar-Se a vós para terdes a força de vos dar um ao outro. Por isso, coragem! A vida familiar não é uma missão impossível. Com a graça do sacramento, Deus torna-a uma viagem maravilhosa que se há de fazer juntamente com Ele; nunca sozinhos. A família não é um ideal, belo, mas na realidade inatingível. Deus garante a sua presença no matrimónio e na família, não só no dia do casamento, mas ao longo da vida inteira. Apoia-vos todos os dias no vosso caminho.

2. “Um o mais” para abraçar a cruz. Agradeço-vos, Roberto e Maria Anselma, por nos terdes contado a história comovente da vossa família, particularmente de Chiara. Falastes-nos da cruz, que faz parte da vida de cada pessoa e de cada família. E destes testemunho de que a dura cruz da doença e da morte de Chiara não destruiu a família nem eliminou a serenidade e a paz dos vossos corações. Isto mesmo é visível também nos vossos olhos. Não sois pessoas abatidas, desesperadas e zangadas com a vida. Pelo contrário! De vós transparece uma grande serenidade e uma grande fé. Dissestes: “A serenidade de Chiara abriu-nos uma janela para a eternidade”. Ver como ela viveu a prova da doença ajudou-vos a levantar o olhar, não ficando prisioneiros da tribulação, mas abrindo vos para algo maior: os desígnios misteriosos de Deus, a eternidade, o Céu. Obrigado por este testemunho de fé! Citastes também esta frase que Chiara dizia: “Deus coloca a verdade em cada um de nós, não é possível retorcê-la”. No coração de Chiara, Deus colocou a verdade duma vida santa e, por isso, quis salvar a vida do seu filho à custa da própria vida. E como esposa, ao lado do marido, percorreu o caminho do Evangelho da família de forma simples e espontânea. No coração de Chiara, entrou também a verdade da cruz como dom de si mesma: uma vida doada à sua família, à Igreja e ao mundo inteiro. Precisamos sempre de ter diante dos olhos grandes exemplos: sirva-nos Chiara de inspiração no nosso caminho de santidade, e que o Senhor sustente e torne fecundas as variadas cruzes que as famílias carregam.

3. “Um o mais” rumo ao perdão. Paul e Germaine, tivestes a coragem de contar a crise que vivestes no vosso matrimônio. Agradeço-vos por isso! E não procurastes suavizar a realidade; mas chamastes pelo nome a todas as causas da crise: a falta de sinceridade, a infidelidade, o mau uso do dinheiro, os ídolos do poder e da carreira, o rancor crescente e o endurecimento do coração. Acho que, enquanto faláveis, todos revivemos a dolorosa experiência sentida perante situações semelhantes de famílias divididas. Ver a família desagregar-se é um drama que não pode deixar ninguém indiferente. O sorriso dos esposos desaparece, os filhos sentem-se perdidos, de todos desaparece a serenidade. E, na maioria dos casos, não se sabe o que fazer.

Por isso, a vossa história transmite esperança. Paul disse que, justamente no momento mais escuro da crise, o Senhor respondeu ao desejo mais profundo do seu coração e salvou o seu casamento. É mesmo assim. O desejo que existe no fundo do coração de cada um é que o amor não acabe, que a história construída juntamente com a pessoa amada não se interrompa, que os frutos nela gerados não se percam. Todos têm este desejo. Ninguém quer um amor de “curto prazo” ou com “prazo estabelecido”. E por isso sofre-se tanto, quando as falhas, as negligências e os pecados humanos fazem naufragar um casamento. Entretanto, mesmo no meio da tempestade, Deus vê o que se a no coração. Providencialmente, vós encontrastes um grupo de leigos que se dedica precisamente às famílias. Aí começou um caminho de reaproximação e cura da vossa relação.

Voltastes a falar entre vós, a abrir-vos com sinceridade, a reconhecer as culpas, a rezar juntamente com outros casais, e tudo isso levou à reconciliação e ao perdão. O perdão cura todas as feridas; é um dom que brota da graça com a qual Cristo inunda o casal e a família inteira, quando se deixa Ele agir, quando se volta para Ele. Foi muito bom terdes celebrado a vossa “festa do perdão”, com os vossos filhos, renovando as promessas matrimoniais na Celebração Eucarística. Isto traz-me ao pensamento a festa que o pai organiza para o filho pródigo na parábola de Jesus (cf. Lc 15, 20-24). Só que desta vez foram os pais que se extraviaram, não o filho! Mas também isto é bom, revelando-se um grande testemunho para os filhos. Com efeito eles, ultraada a infância, apercebem-se de que os pais não são “super-heróis”, não são onipotentes, e sobretudo não são perfeitos. Os vossos filhos viram em vós algo muito mais importante: viram a humildade de pedir mutuamente perdão e a força que recebestes do Senhor para vos levantar da queda. E os filhos têm verdadeiramente necessidade disto! De fato, também eles cometerão erros na vida e descobrirão que não são perfeitos; então lembrar-se-ão que o Senhor nos levanta, que todos somos pecadores perdoados, que devemos pedir perdão aos outros e por nossa vez deveremos também nos perdoar. Esta lição que de vós receberam permanecerá no seu coração para sempre. Obrigado por este testemunho de perdão!

4. “Um o mais” rumo ao acolhimento. Agradeço-vos, Iryna e Sofia, pelo vosso testemunho. Destes voz a muitas pessoas, cuja vida foi transtornada pela guerra na Ucrânia. Em vós, vemos os rostos e as histórias de tantos homens e mulheres que tiveram de fugir da sua terra. Obrigado por não terdes perdido a fé na Providência, vendo como Deus atua em vosso favor inclusivamente através das pessoas concretas que vos fez encontrar: famílias hospitaleiras, médicos que vos ajudaram e tantas outras pessoas de bom coração. A guerra confrontou-vos com o cinismo e a brutalidade humana, mas encontrastes também pessoas de grande humanidade. O pior e o melhor do ser humano! É importante, para todos, não permanecer fixados no pior, mas valorizar o melhor, o bem imenso de que é capaz todo ser humano e, a partir daí, recomeçar…

Agradeço também a vós, Pietro e Erika, por terdes narrado a vossa história e pela generosidade com que acolhestes Iryna e Sofia no seio da vossa já numerosa família. Confidenciastes-nos tê-lo feito por gratidão a Deus e com espírito de fé, como um apelo do Senhor. Erika disse que o acolhimento foi uma “bênção do Céu”. De fato, o acolhimento é precisamente um “carisma” das famílias, sobretudo das numerosas! Pensa-se que, numa casa onde já estão muitos, seja mais difícil acolher outros; mas na realidade não é assim, porque as famílias com muitos filhos estão treinadas para dar espaço aos outros.

E esta, no fim de contas, é a dinâmica própria da família. Na família, vive-se uma dinâmica de acolhimento, porque antes de mais nada os esposos acolheram-se mutuamente, como disseram um ao outro no dia do casamento: “Eu … recebo-te a ti …”. E depois, ao trazer os filhos ao mundo, acolheram a vida de novas criaturas. E enquanto, nos contextos anónimos, quem é mais frágil acaba frequentemente rejeitado, já nas famílias é natural acolhê-lo: um filho portador duma deficiência, uma pessoa idosa necessitada de cuidados, um parente em dificuldade que não tem ninguém… Isto dá esperança. As famílias são lugares de acolhimento, e ai de nós se deixassem de existir! Sem famílias acolhedoras, a sociedade tornar-se-ia fria e inabitável.

5. “Um o mais” rumo à fraternidade. Agradeço-te, Zakia, por nos teres contado a tua história. É maravilhoso e consolador ver que continua vivo aquilo que construístes juntos, tu e Luca. A vossa história nasceu e assentou na partilha de ideais muito altos, que tu assim descreveste: “Baseamos a nossa família no amor autêntico, com respeito, solidariedade e diálogo entre as nossas culturas”. E nada disto se perdeu, nem mesmo depois da trágica morte de Luca. De facto, não só permanecem vivos e interpelam a consciência de muitos o exemplo e a herança espiritual de Luca, mas a própria organização que Zakia fundou de certo modo continua a sua missão. Mais, podemos dizer que a missão diplomática de Luca agora tornou-se uma “missão de paz” de toda a família. Vê se bem, na vossa história, como se podem entrelaçar aquilo que é humano e aquilo que é religião, dando ótimos frutos. Em Zakia e Luca, encontramos a beleza do amor humano, a paixão pela vida, o altruísmo e também a fidelidade ao próprio credo e à própria tradição religiosa, fonte de inspiração e de força interior.

Na vossa família, expressa-se o ideal da fraternidade. Além de serdes marido e mulher, vivestes como irmãos na humanidade, como irmãos nas várias experiências religiosas, como irmãos no compromisso social. Também esta é uma escola que se aprende em família. Vivendo juntos com quem é diverso de mim, na família aprende-se a ser irmãos e irmãs. Aprende-se a superar divisões, preconceitos, fechamentos e a construir juntos algo grande e belo a partir daquilo que temos em comum. Exemplos vivos de fraternidade, como o de Luca e Zakia, dão-nos esperança e fazem-nos olhar com mais confiança para o nosso mundo dilacerado por divisões e inimizades. Obrigado por este exemplo de fraternidade!

Queridos amigos, cada uma das vossas famílias tem uma missão a cumprir no mundo, um testemunho a dar. De modo particular nós, os batizados, somos chamados a ser “uma mensagem que o Espírito Santo extrai da riqueza de Jesus Cristo e dá ao seu povo” (Francisco, Exort. ap. Gaudete et exsultate, 21). Por isso proponho-vos que ponhais a vós mesmos esta pergunta: Qual é a palavra que o Senhor quer dizer, com a nossa vida, às pessoas que encontramos? Qual “o mais” pede hoje à nossa família? Colocai-vos à escuta. Deixai-vos transformar por Ele, para que também vós possais transformar o mundo e torná-lo “casa” para quem tem necessidade de ser acolhido, para quem precisa de encontrar Cristo e sentir-se amado. Devemos viver com os olhos voltados para o Céu; como diziam os Beatos Maria e Luigi Beltrame Quattrocchi aos seus filhos, ao enfrentar as canseiras e as alegrias da vida, “olhemos sempre do telhado para cima”.

Obrigado por estardes aqui. Agradeço-vos o empenho com que levais por diante as vossas famílias. E peço-vos, por favor: não vos esqueçais de rezar por mim.

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